Transcrição Ex Libris – S01e20

[Tecnologia] – O Cazaquistão decidiu trocar seu alfabeto

Aprendizados Culturais do Cazaquistão para o Bem da Gloriosa Nação Brasileira

Olá, eu sou Sérgio Vieira e este é o 20º e último episódio da primeira temporada do Ex-Libris, um podcast rápido e ligeiro sobre Política, Comportamento Humano, Ciência, Tecnologia e Cultura. A cada episódio um tema. 

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Começa agora o Ex-Libris sobre Cultura de 30 de dez de 2018.

Hoje veremos porque O Cazaquistão decidiu trocar seu alfabeto ou Aprendizados Culturais do Cazaquistão para o Bem da Gloriosa Nação Brasileira

O Reino Cazaque foi fundado por descendentes de Genghis Khan no século XVI (ou seja coisa de 550 anos atrás), como sendo o Khanato Cazaque, no cruzamento das economias e culturas regionais, e foi o primeiro reino independente da etnia cazaque – um povo nômade de língua túrquica (ou turcomana, ou túrcica ou ainda turco-tártara), que habitava as vastas estepes da Eurásia. 

O reino Cazaque existiu até o século XVIII, até que se fragmentou e, posteriormente, foi incorporado pelo Império Russo.

Em 2017 o Cazaquistão determinou oficialmente a transição gradual da língua cazaque em cirílico para a língua cazaque em alfabeto latino. Já aviso, é a terceira vez que o país troca oficialmente de alfabeto em menos de um século (Borat iria adorar).

Para tanto, criou a Comissão Nacional para a Tradução do idioma cazaque para caracteres latinos, cujo trabalho deverá ser concluído até 2025. (‘Tá parecendo o Brasil, né?!).

Essa atitude não é assim de graça, ou só porque os cazaques querem que todos os que usam o idioma cazaque em todos os continentes o escrevam da mesma forma (alô patrícios de ultramar, isto é um fato para nós brasileiros, e para vocês continuará com acordo ortográfico ou não sendo um “facto”). Eles também não estão de saco cheio com seu alfabeto, tudo isso é parte de um plano… ahá!… de modernização do Cazaquistão (eles vão abandonar aquela história de potássio).

E constitui também em mais um reforço para a sua independência como país e na reconstituição de suas bases históricas, após a extinção da União Soviética, em ‘91, que permitiu aos grupos étnicos que o integravam a busca da autodeterminação. 

Os cazaques buscam com esta atitude uma reflexão séria sobre a etapa soviética na sua história – que trouxe não apenas a modernização, mas também muitas tragédias nacionais, como a fome que resultou da coletivização forçada das décadas de 1920 e 1930, e as quatro décadas de testes nucleares que ainda afetam a saúde dos cidadãos.

O Cazaquistão já tinha introduzido o alfabeto latino entre 1929 e 1940, mas, no início desses anos 1940 do século XX, o alfabeto teve que ser adaptado ao cirílico para “melhorar a comunicação entre as nações e povos da União Soviética”, tal como determinou, então, Moscou (percebeu?). Ah, sim… antes de 1929 eles utilizavam o tradicional alfabeto árabe usado pelas minorias muçulmanas da região da Ásia Central.

Após o fim da União Soviética, apenas Azerbaijão e Turquemenistão tiveram progressos significativos na mudança para o alfabeto latino, enquanto no Uzbequistão a transição fracassou. 

O novo alfabeto com 26 símbolos ao invés dos 42 do cirílico – foi anunciado em outubro de 2017 e recebeu duras críticas da população – algo raro para um país governado há três décadas pelo pulso firme de Nursultan Nazarbayev. 

A primeira versão (apesar de facilitar o uso nos dispositivos eletrônicos globalizados) foi considerada “feia” e passou por uma reformulação em fevereiro de 2018, que substituiu os apóstrofes por acentos agudos. Na transcrição eu apresento uma frase na primeira versão e na versão definitiva. Quase nada muda (ver abaixo).

Então, por exemplo, República do Cazaquistão, que no formato inicial seria escrita como Qazaqstan Respy’bli’kasy virou Qazaqstan Respýblíkasy. Essa última versão parece ter agradado mais.

“Está mais bonito!”, exclamou Asset Kaipiyev, dono de um pequeno restaurante em Astana, capital do Cazaquistão, ao ver o novo formato do alfabeto.

Kaipiyev abriu s eu restaurante em dezembro de 2017 com o nome de Sa’biz, soletrado com a primeira versão do alfabeto latino, com apóstrofe. Mas todo seu material de marketing – do guardanapo ao enorme letreiro – terá que ser substituído. Kaipiyev não cogitou a hipótese de o governo rever o alfabeto e agora estima gastar R$ 12 mil com a mudança.

O que Kaipiyev e outros donos de pequenos negócios estão passando afetará em maior escala todo o país, que precisará mudar desde documentos oficiais a livros didáticos, além de ensinar à população a nova escrita.

De acordo com o censo de 2016, 63% da população são cazaques, 24% são de origem russa, 3% uzbeque e o restante de outras minorias como uigures, tártaros e outros.

Atualmente, o cazaque e o russo são as línguas oficiais. Mas os anos sob domínio do governo soviético levou o russo a ser falado pela maioria do Cazaquistão – quase 94% dos mais de 18 milhões de cidadãos (bem menor que a região metropolitana de São Paulo) são fluentes na língua. A fluência em cazaque é de 74%.

Enquanto isto, a frequência de uso da língua depende da região. Províncias do Norte e centros urbanos influenciados pela Rússia, como Almaty e a capital, Astana, usam o russo tanto nas ruas quanto nos escritórios do governo. No Sul e Oeste, o cazaque é mais usado.

A mídia estatal anunciou que o orçamento do governo para a transição dos próximos sete anos – dividida em três etapas – será de 218 bilhões de tenges (coisa de R$ 2,4 bilhões). Do total, cerca de 90% seriam investidos em educação.

A primeira etapa, entre 2018 e 2020, inclui a criação de um departamento governamental para coordenar a transição, a tradução de livros e outros materiais didáticos e o treinamento de professores. 

Na segunda, entre 2021 e 2023, a nova escrita será introduzida ao público e as diretrizes de ensino serão atualizadas. 

Na última, prevista para 2024 e 2025, ocorrerá a tradução de documentos oficiais e das notícias da mídia estatal, e será expandida ainda a campanha de “conscientização”.

Especialistas estimam que os professores terão que estudar todos os dias durante um mês. E para as crianças, não serão necessárias mais que dez aulas, pois elas aprendem mais rápido que os adultos (isso a gente já sabe).

Sem um detalhamento dos gastos em cada rubrica, economistas têm tido dificuldade de mensurar os custos da empreitada. É… vai custar muitos tenges.

Um impacto difícil de medir seria a fuga de cérebros. Se a reforma não for bem implementada, há grandes riscos de que as  pessoas altamente qualificadas que falam russo, incluindo alguns da etnia cazaque, considerem a emigração. Eles correm risco de perder boas oportunidades profissionais durante todo o período de adaptação. 

Esse risco ficou evidente em fevereiro de 2018, quando o presidente Nazarbayev, bilíngue, ordenou que todas as reuniões de gabinete fossem realizadas em cazaque. 

Como o russo há muito tempo é a língua para os assuntos de Estado, o comando do governo por russos muitas vezes supera o de cazaques. Com isso, uma reunião transmitida pela TV ao vivo mostrou oficiais com dificuldades de se expressar, alguns optaram até pela tradução simultânea.

Além disso, documentos de identidade, passaportes, leis e regulamentações – toda a papelada que o governo  precisam para funcionar – terá que ser traduzida. O governo anunciou que isto fará parte da terceira etapa da transição, mas não especificou o quanto irá custar.

Outra mudança ainda sem orçamento definido é a implementação do novo alfabeto pela mídia estatal. Para se usar o novo alfabeto, será preciso treinar as pessoas primeiro, e então adaptar toda a infraestrutura de TI ao novo formato. O custo, segundo alguns, ficaria em torno de R$ 56 a R$ 112 milhões.

E esses são números apenas para o setor público. O setor privado teria que fazer isso por conta própria, obviamente. Poderia gastar o dobro, ou dez vezes mais. Isto depende do quão rígido o governo será; por exemplo, será exigida a mudança no período de um único ano? É possível que sim. Pois, governo implantando agenda política é algo incontrolável e imprevisível, né?!

Há o temor ainda que a população, especialmente os mais idosos, tenha dificuldades para ler e escrever com o alfabeto latino. Por isso, a comunicação no setor público talvez tenha que ser realizada em várias línguas. Isso pode ser chamado de “o ônus da língua”, porque todo documento do setor público teria que ser escrito em russo, cazaque e com o novo alfabeto cazaque… Para isso seria preciso empregar tradutores, destacando que esse custo também não foi descrito em nenhum orçamento, até o momento.

Estima-se que a transição completa custaria algo em torno de R$ 3,7 bilhões, mais de um bilhão acima do previsto pelo governo cazaque. 

Alguns burocratas estatais consideram, por exemplo, que os custos da tradução de documentos serão inseridos no orçamento usual do país. Afirmando que as despesas reais serão apenas para programas informativos para apoiar a transição. Outros acreditam que o orçamento anual não ultrapassará R$ 33 milhões entre 2018 e 2025. (Pô… eles são pior que a gente, esse treco vai custar bilhões! Mas deixa meus palpites pra lá, vamos em frente).

O governo sabe que a transição do alfabeto é algo “difícil de vender” e que não trará retorno direto em investimentos. Por isso, o próprio governo divulga que o processo deve ser visto mais como um programa de desenvolvimento social e cultural. É mais uma questão de identidade nacional que todos devem estar prontos para pagar (como sempre).

Economistas creem que a economia sofrerá uma desaceleração por conta das divisões políticas que surgirão da mudança na escrita. Enquanto alguns especulam que a decisão de Nazarbayev sinaliza o esfriamento da relação com a Rússia, acredita-se que ela também poderia enfraquecer as relações comerciais com as antigas repúblicas soviéticas.

Hoje até 10% do fluxo de comércio entre Rússia, Cazaquistão e Ucrânia ocorre pela conveniência da língua compartilhada, que de certa forma se traduz numa proximidade de cultura e mentalidade. Isso também significa que os cazaques que falam russo têm mais mobilidade econômica entre os países. Enquanto isto, o Azerbaijão e a Geórgia, nações não fluentes em russo, têm relações comerciais mais fracas com o Cazaquistão.

Por outro lado, ter um alfabeto latino significa estar mais integrado ao mundo ocidental. 

A Turquia, por exemplo, fez a transição do alfabeto árabe para o latino em 1928, o que a levou a formar alianças com a União Europeia e travar negociações para se tornar um de seus membros – resfriadas recentemente, graças ao maluco do Erdogan.

A Turquia há muito é exemplo de como a modernização da língua e dos sistemas legais elevaram sua posição a potência econômica. Mas esse progresso se deve, principalmente, à expansão da alfabetização e ao firme controle de Mustafa Kemal Atatürk, fundador da República da Turquia, no início do século 20.

A transição para o alfabeto latino, que ocorreu em 28, foi realizada muito rapidamente, numa época que poucos turcos sabiam ler e escrever. Atatürk precisava de pessoas educadas para que seu país estivesse no mesmo nível que a Europa e os Estados Unidos, e parte do impulso da educação foi o novo alfabeto.

A transição do Cazaquistão tem mais relação com o afastamento de seu passado soviético do que com a educação ou economia, é obvio, claro e cristalino. É um argumento político, uma demonstração que é um Estado independente, moderno, que é uma nação.

Talvez por isso, especialmente os jovens estão celebrando o novo alfabeto. Pesquisas feitas na última década pelo instituto linguístico mostram que, em 2007, 47% dos jovens entre 18 e 25 anos apoiavam a mudança. Em 2016, a adesão nessa faixa etária saltou para 80%.

É a escolha das pessoas, da nação. E o novo alfabeto está conectado com os sonhos e ao futuro cazaque. Isto mostra que a história de um Cazaquistão independente da Rússia está finalmente começando.

Apesar do custo adicional ao seu negócio, Kaipiyev, o dono do restaurante Sa’biz, apoia integralmente a mudança. Em suas palavras:

”Queremos nos conectar com a Europa e a América e com outros países. Isto vai nos ajudar a virar a página para o próximo capítulo”.

Mas Kaipiyev não deve mudar o material de seu restaurante de imediato. Depois de refletir por um momento, ele finaliza:

“Acho que vou deixar assim por enquanto. Mudarei quando as pessoas realmente conseguirem ler o que está escrito”.

Nota Final:

Após a gravação deste episódio e antes de sua publicação Nursultan Nazarbayev de 78 anos, presidente por quase 30 anos do Cazaquistão, desde a queda da União Soviética em 1991, transferiu em 19 de Março de 2019 a presidência do país para o presidente do Senado Kazaque, Kassym-Jomart Tokayev. 

Ao que parece esta atitude possui outros interesses de Nursultan já que ainda é mantido como chefe do conselho de segurança, como líder do Nur Otan o partido que domina o parlamento e ainda manterá  título legal de líder da nação.

O Ex-Libris, um podcast rápido e ligeiro – às vezes – hoje sobre Cultura, acabou. 

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